quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Canetas contra canhões


Um dia igual aos outros. A caneta vai escrever, marcar o papel branco, transformar o vazio, magicá-lo em realidade. Os traços vão saindo, a forma forma-se, a obra nasce. Tudo está calmo, sereno, normal, só se ouve o silêncio da escrita. Repentinamente a caneta estremece, sobressalta-se, a forma deforma-se, mas sobrevive, mesmo que desprogramada e subvertida. O alarme desperta e acorda Charlie em vigia.
Do outro lado da janela, os passos são firmes, autómatos, basilares, sustentáveis de um peso. O dos canhões em riste, do dedo embrutecido no gatilho, o olhar cego, maquinalmente seletivo e morto. O punho negro empurra a porta, nem bom dia, nem boa tarde, o dedo embrutece-se apenas mais uns milímetros e o mecanismo é acionado. Energia irreversível, combustão, clarão, estrondo ensurdecedor, o cano é percorrido, uma e outra vez. As balas rastilham o ar.
Ninguém se mexe, apenas se pensa. Os olhares fixam-se na agressão. Os estiradores abrem-se em escudos, as balas esbarram, outras passam, mas logo são abertas ao meio, numa precisão métrica infinita de folhas de papel supercortante. Dividem-se, desunem-se e caiem no chão num tilintar inofensivo. Nuvens cinzentas esboçadas no ar por lápis de carvão ofuscam a visão. As rajadas param.
Bisnagas de tinta esguicham, e os esguichos trespassam a cinza, entrelaçam-se num tronco grosso, dois ramos com mãos nas pontas formam-se e seguem na direção dos dois. Apanham-nos, imobilizam-nos, seguram-nos, elevam-se, rompem telhados e esticam-se, subindo pelo céu até ao limite do respirável, até à fronteira da morte.
A tinta de azul elétrico, irradia luz, ofusca a torre Eiffel, torna-se visível, todo o mundo a vê, milhares de metros e litros depois liquidifica-se por completo e colora o planeta numa chuva de artifício. Sem chão, os dois pares de olhos esbugalham-se. Contudo, mal vêm o mundo lá em baixo. O espaço para, o instante é breve. A queda é vertiginosa, as armas libertam-se, desintegram-se e esfumam-se na atmosfera. As vestes rompem-se, libertam-se, esfarrapam-se e balançam como folhas. Os corpos seguem incontroláveis, sugados para baixo, a velocidade é absurda, e o ar falta, mas a terra e o chão sólido e tangente estão fatalmente próximos. Não vai doer. Será fulminante. As almas seguem presas. As pálpebras fecham.
As canetas agrupam-se, no exterior, em círculo, de bico para o centro, e começam a debitar letras, que se encaixam e criam uma rede. Os olhos continuam fechados, o medo do violento e exterminante embate apodera-se, mas eis que se abrem pela captura leve e subtil da rede. As canetas apontam para baixo. A rede desmancha-se e as letras caiem no chão ao redor dos dois. Nus, despidos, depilados, limpos, indefesos, rendidos. Mas não redimidos. O olhar pasmo logo se enraivece, as canetas embicam novamente ao centro. E disparam!
Letras. Penetram no crânio, sem dor. Marcadores injetam cor. Sem dor. Lápis definem traços. Sem dor. Pinceis pintam roupas e artefactos. Sem dor.
Os dois, entreolham-se, sem capuz libertam-se. E vão comprar o jornal.

Embora assim não pudesse ser, também não se acredita que assim tenha sido. Foi. Imaginado também o será, mesmo que seja apenas isso. Escrito, expressado, acaba de o ser. O momento é de escrever.

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